22 dezembro 2023

Transfusão de hemácias na UTI: após 20 anos

 

  1. Título: Red Blood Cell Transfusion in the Intensive Care Unit.

  2. Autores: Raasveld SJ, Bruin S, Reuland MC, et al for the InPUT Study Group. JAMA, published online October 12, 2023. doi:10.1001/jama.2023.20737.

  3. Motivação para o trabalho: verificar a prática de gatilhos para indicar transfusão de hemácias após mais de 20 anos de trabalhos com estratégia restritiva (Hebert et al, 1999).

  4. Métodos: coorte prospectiva, multicêntrica - 30 países, 233 UTIs, 3643 pacientes; a coleta de dados ocorreu durante 16 semanas consecutivas nas UTIs, entre 2019 e 2022 (períodos não concorrentes em diferentes hospitais, por causa do efeito assincrônico da pandemia de Covid-19 nos diversos continentes).

  5. Resultados: 1 em cada 4 pacientes recebeu transfusão de hemácias, com média de 2 unidades por paciente; pacientes transfundidos eram mais graves, com maior uso de ventilação mecânica, com choque ou em período pós-operatório; a heterogeneidade entre unidades foi enorme (22 UTIs não reportaram nenhuma transfusão, enquanto 14 UTIs fizeram transfusão em 100% dos pacientes internados); o motivo para transfusão mais frequente foi o nível de Hb (média de 7,4 g/dL); a hipotensão foi o fator fisiológico mais incitante (42%), seguido de taquicardia (27%) e hiperlactatemia (18%); mais de 80% dos pacientes transfundidos tinham nível de Hb maior que 7 g/dL no dia da transfusão. 

  6. Figuras / Tabelas para colocar na aula


  7. Qual é a lição? Poucas mudanças ocorreram após estudos do início da década de 2000. Estudos CRIT (americano) e ABC (europeu), que são de quase 20 anos atrás, obtiveram resultados semelhantes, principalmente no nível crítico de Hb pré transfusional (8,4 e 8,6, respectivamente); o estudo atual apontou para limiar 1 g/dL menor. Eu considero este fato uma discreta evolução frente às evidências já estabelecidas da estratégia restritiva de transfusão. Um fato novo é a demonstração da grande heterogeneidade de condutas entre UTIs, simbolizando uma regionalidade na hora de prescrever transfusão de hemácias: houve lugares onde não houve transfusão durante as semanas de estudo, enquanto se transfundiu quase todos os pacientes selecionados para estudo em outras unidades. Nota-se que alterações fisiológicas como hipotensão ou taquicardia também influenciam a decisão de transfundir, mesmo que o nível de Hb ainda seja maior que 7 g/dL. Cerca de 16% dos episódios de transfusão foram motivados por hiperlactatemia, que foi mais proeminente na América do Sul (maioria do Equador) - mas foram apenas algumas dezenas de pacientes, e pode refletir um comportamento local, que não é disseminada no nosso continente.


Take-home messages

  • Transfusão de hemácias são realizadas em pacientes mais graves na UTI, preponderante em associação com choque, período em pós-operatório ou uso de ventilação mecânica;

  • Pacientes apresentam em média Hb 7,4 g/dL antes da transfusão, recebem em média 2 unidades de hemácias durante permanência na UTI;

  • As indicações de transfusão são: níveis criticamente reduzidos de Hb (há muita variabilidade entre as UTIs), sangramento ativo e instabilidade hemodinâmica; os pacientes apresentam alterações fisiológicas, como hipotensão e taquicardia, em 60% dos episódios;

  • Quase 40% dos episódios têm alguma indicação de transfusão, mas sem alterações fisiológicas significativas; somente 17% dos episódios estavam abaixo do patamar de estratégia restritiva da literatura (menor que 7 g/dL).

16 setembro 2023

Alguém teve sepse; quando a vida voltará ao normal ?

Em setembro, aproveitamos o dia 13 para propagar o combate à Sepse no mundo inteiro. É uma iniciativa da Sociedade Alemã de Medicina Intensiva, apoiada pelo Ministério da Saúde daquele país. A sepse é uma disfunção orgânica (ou disfunções), ameaçadora da vida, causada por resposta desregulada à uma infecção. O tratamento precisa ser rápido para que o paciente tenha maior chance de sobreviver. Há inclusive um guideline que é revisado a cada 4 anos, e todos seguem as recomendações a nível mundial.

Mas a Sepse é uma síndrome que vai além da fase aguda, porque as disfunções orgânicas podem demorar a desaparecer ou melhorar. De 20% a 50% morrem durante a hospitalização índice. Os pacientes que sobrevivem e saem do hospital, precisam ainda de cuidados e reabilitação por tempos variáveis, mas isso ainda é pouco estudado.

Um estudo recente trouxe mais informações sobre o pós-alta dos sobreviventes, com foco a saber se eles retornam ao trabalho prévio ao quadro de Sepse. Foi realizado na Alemanha, retrospectivo, a partir de seleção de 7.370 casos/contas de sobreviventes, a partir da base de dados nacionais com código de CID de sepse associado a infecções e disfunções orgânicas.

Cerca de 60%-70% consegue retornar ao trabalho após 1 ano. É comum que pacientes que retornam ao seu local de trabalho precisem mudança de cargo ou tarefas, redução da remuneração ou da jornada de trabalho. Os fatores que mais afetam este retorno são: idade maior, presença de comorbidades prévias e número e gravidade de  disfunções orgânicas. A internação em UTI (para suporte a alguma ou várias disfunções orgânicas) reduz a chance de retorno ao trabalho à metade.

A temporalidade da observação da coorte foi esclarecedora no tangente ao acompanhamento: as taxas de recuperação são crescentes entre 6 meses e 1 ano, mas discretamente decrescente em 2 anos. Cerca de 60%-65% dos pacientes consegue se recuperar e volta a trabalhar até 6 meses após saída hospitalar. Há um ganho de aproximadamente 10% dos pacientes retornando ao trabalho entre 6 meses e 1 ano. Mas parece haver um declínio de ~ 13% em 2 anos (se afastam do trabalho após retorno).

Após 1 ano, muitos pacientes permanecem com problemas clínicos ativos, que embora estejam compensados, limitam as atividades diárias (35%-41% dos pacientes sobreviventes).

De 4% a 7% apresentam problemas psicológicos (ex. desordem de estresse pós-traumático, ansiedade) isoladamente.

Problemas de cognição são muito limitantes e permanecem em torno de 3%-4% dos sobreviventes que voltam a trabalhar, geralmente associados a desordens clínicas e/ou psicológicas. Mas a cognição está afetada em quase 12% daqueles que não retornam ao trabalho.





Resumindo, o acometimento da sepse perpassa muitas vezes a fase mais aguda que é tratada no hospital, mesmo havendo sucesso com o tratamento precoce: declínios clínico, psicológico e cognitivo são prevalentes e precisam de cuidados após a alta hospitalar. Somente assim, será possível para o paciente retornar ao seu trabalho de maneira eficaz. O ajuste de função pode ser necessário e precisa de muita atenção mesmo após o retorno ao trabalho, porque alguns desistem entre 1 e 2 anos após a alta hospitalar.

Referência:
- Struzek et al, Return to work after sepsis—a German population-based health claims study. Front Med 2023; Published online 2023 May 25. doi: 10.3389/fmed.2023.1187809

29 julho 2023

O que há de novo no guia de Sepse Internacional ? Novidades depois da pandemia

A pandemia de Covid-19 ofuscou muitas coisas que surgiram durante o período de 2020 a 2022. Prestamos atenção no atendimento desta doença viral, que causou sepse muitas vezes, mas o guia da Surviving Sepsis Campaign foi revisado (com 1 ano de atraso) e publicado. Vamos analisar algumas novidades e alterações das recomendações, em relação à última versão de 2016 (baesado na referência abaixo e opiniões próprias).


  1. Houve maior inclusão de experts ao redor do mundo ! Foram 60 espalhados por 22 países, descentralizando as decisões que era o “standard” anteriormente. Ex-pacientes e familiares também foram representados, com a participação de 11 leigos;

  2. A maior novidade foi a seção sobre recuperação e prognóstico a longo prazo. Embora as principais medidas são aquelas que devem ser realizadas nas primeiras 1-3 horas de atendimento, houve ênfase na necessidade de cuidados após a fase mais aguda, com recomendação de follow-up, suporte social e financeiro, reabilitação funcional e psicológica e atenção para medidas que evitem reinternações (que são frequentes nesta população = 1 em cada 3 pacientes procura emergência após alta hospitalar em 30 dias pós-alta e 1 em 6 pacientes volta a internar também em 1 mês). Mas todas estas medidas ainda não foram mensuradas em relação à sua eficácia e/ou redução de morbi-mortalidade;

  3. Total de recomendações = 93; apenas 15 com grau forte de evidências; outras 15 são opiniões de “melhor prática”; 9 de NÃO recomendações (seria melhor dizer contraindicações); e o restante são recomendações fracas, nas quais subentende-se que você pode ou não acatar;

  4. Uma “não-recomendação” foi o uso do escore simples de qSOFA para estratégia única de screening/triagem de pacientes, principalmente em emergências; nem sensibilidade nem especificidade são relevantes, principalmente quando se compara com outros escores de avaliação de pacientes sépticos, como MEWS, NEWS e outros escores que abrangem mais sinais vitais e oxigenação;

  5. A reposição de líquidos também é menos valorizada hoje em dia; a quantidade de 30 ml/kg (cerca de 2 litros num paciente adulto) pode eventualmente aumentar morbidade, principalmente em cardiopatas e nefropatas crônicos;

  6. O debate cristaloide versus coloide parece “demodé”: cristaloides são unanimidade, com preferência duvidosa para soluções equilibradas com menos sódio e cloro (ex. Ringer lactato). Mais 1 contraindicação é usar amidos ou gelatinas como reposição volêmica. O uso de albumina é recomendado quando já se fez muito líquido cristaloide (mas ninguém diz o quanto é muito…);

  7. O exame clínico de enchimento capilar periférico é útil e semelhante ao uso de lactato sérico seriado para monitorar o tratamento (mas o efeito é marginalmente melhor para o exame clínico… p valor de 0,06; a clínica é soberana!);

  8. Administrar o antibiótico em 1 hora após a apresentação continua fortemente recomendada para doentes com choque, mas pode ser em até 3 horas se não é choque séptico (cabe fazer diagnóstico diferencial com outras causas de descompensação clínica ou pacientes com infecção sem sepse). Mas na prática, aumentar a variabilidade de condutas pode confundir a equipe e afrouxar o protocolo. Na verdade, o paciente com infecção, mesmo sem sepse, precisará de antibiótico igualmente; melhor que seja precocemente. Por outro lado, pode haver um certo desperdício de uso de antibióticos e todos temem aumento de resistência antimicrobiana;

  9. O dogma que vasopressor só pode ser feito em acesso venoso profundo agora tem uma janela de exceção de 4 a 6 horas, e não se atrasa o tratamento de um paciente com choque e hipoperfusão periférica e precisa de noradrenalina (1a opção) em acesso periférico;

  10. Corticoide: se mantém como opção para reduzir tempo de uso de vasopressor, mas não é obrigatório;

  11. Vitamina C: finalmente acabou esta discussão com estudos clínicos de resultado negativo, ou seja, é apenas uma vitamina e não interfere no prognóstico.


Referências:

  • Prescott HC, Ostermann M. What is new and different in the 2021 Surviving Sepsis Campaign guidelines. Med Klinic 2023, https://doi.org/10.1007/s00063-023-01028-5.

  • Chang DW, Tseng CH, Shapiro MF. Rehospitalizations Following Sepsis: Common and Costly. Crit Care Med 2015; 43(10):2085–93.

  • Jones TK, Fuchs BD, Small DS, et al. Post–Acute Care Use and Hospital Readmission after Sepsis. Ann Am Thorac Soc. 2015; 12(6): 904–13.

  • Hernandez G, Ospina-Tascon G, Damiani LP, et al. Effect of a Resuscitation Strategy Targeting Peripheral Perfusion Status vs Serum Lactate Levels on 28-Day Mortality Among Patients With Septic Shock: The ANDROMEDA-SHOCK Randomized Clinical Trial. JAMA 2019;321(7): 654-64.

18 julho 2023

O Guerreiro do Fim de Semana vs o Atleta Constante: como fazer exercícios físicos para garantir a saúde ?

Há evidências que devemos fazer atividades físicas regularmente ? Sim !

A American Heart Associaton (AHA) recomendou 150 minutos de exercício físico por semana como medida efetiva em reduzir eventos cardiovasculares, desde 2018. Estes 150 minutos podem se dividir em 1 ou mais vezes por semana, embora seja intuitivo dizer que é melhor dividir este tempo em 3 a 5 vezes na semana, a fim de evitar sobrecarga de exercícios em 1 a 2 dias. Esta preocupação é teórica e se justifica pela possibilidade de lesões osteomusculares e complicações cardiovasculares que são descritas em atletas ou não-atletas, como fibrilação atrial aguda, IAM ou AVE.

Logo, quando a/o paciente é instruída(o) em praticar atividades físicas regularmente, dizemos que o período mínimo é de 150 minutos e que se divida em mais dias da semana. Porém, é comum a réplica: mas quase não tenho tempo de segunda a sexta... posso ou devo acumular no fim de semana ?



Dois estudos recentes abordaram esta questão: O'Donovan (2017) e Khurshid (2023) mostraram que sim, é possível reduzir risco cardiovascular se você é atleta constante (mais de 3 dias de exercício por semana) ou a/o guerreira(o) do fim de semana (1-2 dias por semana de atividade). Estas 2 estratégias são melhores que não praticar pelo menos 150 minutos de atividade física semanal.

O trabalho de 2017 já sugeria a equidade das estratégias, mas focou naqueles que praticavam atividades mais leves (150 minutos por semana) versus mais intensas (foco em 75 minutos semanais, como futebol americano, cliclismo, natação, corrida rápida).

O trabalho de Khurshid (2023), publicado neste mês no JAMA, incluiu quase 90 mil mulheres e homens americanos adultos, com idade média de 62 anos, acompanhados por mais de 2 anos. Comparou a prática de atividade física moderada e intensa, perfazendo pelo menos 150 minutos semanais, em 3 grupos: mais de 3 vezes por semana, 1 a 2 vezes e pessoas que não alcançavam 150 minutos semanais destas atividades.
A redução de eventos cardiovasculares foi significativa nos grupos de atletas constantes e dos "guerreiros", em comparação com aqueles que falharam em alcançar o objetivo mínimo. IAM e AVE ocorreram menos em atletas (redução de ~20%), fibrilação atrial também (~25%) e insuficiência cardíaca (~ 35%). Não houve diferença entre os atletas constantes versus "guerreiros".


Pronto: questão resolvida ? Mais ou menos.
- lesões osteomusculares não foram medidas, e elas podem ocorrer mais frequentemente em atividades intensas prolongadas;
- parece ter havido um "cutoff" de 230 minutos que separava os que mais se beneficiaram versus aqueles que tiveram incidência maior de eventos cardiovasculares (exceto para desfecho AVE);
- o tempo de observação foi relativamente pequeno, porque 2 anos é um período curto para os eventos estudados numa coorte.

Conclusões:
1. Faça alguma atividade física regular, mesmo que seja uma vez por semana;
2. Que a atividade tenha intensidade pelo menos moderada, para alcançar melhor desempenho do seu coração no longo prazo;
3. A AHA recomenda 150 minutos semanais, mas parece que o limiar é maior - 230 deveria ser o número a a ser alcançado;
4. Você até pode ser "guerreira(o)" do fim de semana, porque o efeito cardiovascular é o mesmo do atleta regular, mas cuidado com lesões de ordem osteomuscular...

Ref:
- Katzmarzyk PT, Jakicic JM. Physical Activity for Health—Every Minute Counts. JAMA 2023; 330(3):213-4. (artigo aberto no site da revista)
- Khurshid S, Al-Alusi MA, Churchill TW, Guseh JS, Ellinor PT. Accelerometer-derived “weekend warrior” physical activity and incident cardiovascular disease. JAMA 2023. Published July 18, 2023.
- O’Donovan G, Lee IM, Hamer M, Stamatakis E. Association of “weekend warrior” and other leisure time physical activity patterns with risks for all-cause, cardiovascular disease, and cancer mortality.  JAMA Intern Med. 2017;177(3):335-42.
- American Heart Association Recommendations for Physical Activity in Adults and Kids (2018). Disponível em https://www.heart.org/en/healthy-living/fitness/fitness-basics/aha-recs-for-physical-activity-in-adults.

03 julho 2023

Condutas no tratamento do AVC: novidades

Dois estudos foram divulgados recentemente sobre condutas no tratamento do AVC isquêmico (AVCi). O uso de medicamentos antiplaquetários e de anticoagulação é palco de debate intenso entre neurologistas, emergencistas e hospitalistas. Se não existe muitas dúvidas que trombólise e/ou trombectomia deve ser feita em pacientes com AVCi agudo e déficit neurológico significativo, o terreno fica mais “arenoso” quando se debate se esta terapia deve ser feita em pacientes com déficits agudos mais discretos e quando deve-se iniciar anticoagulação em casos de AVCi embólico.

O primeiro estudo é sobre conduta após AVCi em pacientes com fibrilação atrial. Há dúvida em relação ao “timing” de início de anticoagulação apos evento isquêmico cerebral nesta população. O certo é iniciar a terapia para evitar novo evento tromboembólico, mas há receio de hemorragia intracraniana, principalmente no local da isquemia, se o tratamento anticoagulante é iniciado logo após o evento agudo. Mas a chance de recorrência não é desprezível, e déficits neurológicos piores podem ocorrer se atrasa a terapia.

O estudo randomizado e controlado contou com 2032 participantes em 103 centros de 15 países durante quase 5 anos (2017-2022), divididos entre 1006 e 1007 pacientes recebendo DOAC precoce ou tardio.

A extensão do AVC foi definida como menor com até 1,5 cm em exame de imagem(TC ou RM); moderada se distribuição cortical em território cortical superficial de artérias cerebrais anterior, média ou posterior; e maior se tamanho de isquemia acima de 1,5 cm das artérias cerebrais ou em cerebelo ou tronco cerebral.

A randomização equilibrou também pacientes por idade maior ou menor que 70 anos, tamanho do infarto, escore NIHSS (limiar de 10 pontos) e centro do estudo (hospital).

Anticoagulação precoce foi feita em até 48 horas se tamanho do infarto era menor ou moderado ou entre 6-7 dias com infartos maiores. Já a terapêutica “tardia” foi definida como aquela iniciada em 3-4 dias após AVE menor, 7 dias no moderado e 13-14 dias no maior.

O desfecho principal analisado foi novo evento cardiovascular ou sangramento intra ou extracraniano em até 30 dias. Secundariamente, analisou-se estes eventos mais a escala de Rankin em 30 ou 90 dias.

 



A população incluída tinha em média 77 anos, majoritariamente da Europa central e Reino Unido. Dois terços tinham HAS, um sexto tinham diabetes e cerca de 18% teve AIT ou AVE previamente. O risco de recorrência de AVE era alto (CHADS-Vasc score médio 5 pontos). O escore NIHSS médio foi 5 pontos na admissão e quase 40% recebeu trombólise e/ou trombectomia como tratamento imediato. Para cada 3 casos de AVE menor ou moderado, havia 1 caso de AVE maior.

A incidência de novo evento em 30 dias foi 2,9% no grupo de anticoagulação precoce e 4,1% no tardio. A diferença não alcançou diferença estatística, porque o intervalo de confiança da diferença ajustada ultrapassou a unidade, mas houve tendência a resultados melhores no grupo precoce, principalmente em 90 dias. Na verdade, a maior diferença é na recorrência de isquemia cerebral, porque a taxa de sangramento significativo é praticamente igual (0,2 a 0,5%). A funcionalidade (Rankin) e a mortalidade por qualquer razão também foram semelhantes nos 2 grupos.

Conclui-se que a terapia iniciada de forma precoce é relativamente segura e não é pior que a terapia realizada da forma tradicional, talvez com discreta superioridade em relação à recorrência da isquemia cerebral.


O segundo estudo foi avaliar se basta fazer terapia antiplaquetária em pacientes com AVCi menor (NIHSS menor ou igual a 5 pontos), versus manter conduta de trombólise.

Foi estudo multicêntrico (38 hospitais) e randomizado, com 760 pacientes, que chegaram a tempo de usar terapia trombolítica no hospital (4,5 horas). Pacientes no braço antiplaquetários receberam dose de ataque de clopidogrel 300 mg no 1o dia e 75 mg por dia por 12 dias + aspirina 100 mg por dia também por 12 dias. O principal desfecho foi a boa funcionalidade em 90 dias (mRS score 0-1 ponto).

Diante da pouca perda em follow-up (n=75 pacientes, cerca de 10%), os grupos foram muito semelhantes. A funcionalidade em 90 dias foi de ~ 94% no grupo antiplaquetários e ~91% no grupo rtPA, sem diferença estatística. Sangramento intracraniano ocorreu em 0,3% e 0,9%, respectivamente (também com p valor alto); mas sangramentos diversos ocorreram mais frequentemente no grupo de rtPA(5,4% vs 1,6% com antiplaquetários). 

Há algumas limitações, como a taxa de 20% de “crossover” entre os grupos, mas o ajuste da análise estatística manteve o principal resultado de não-inferioridade. Outro ponto de atenção é que não se conseguiu a análise imagem (angioTC ou angioRM) de vasos de todos os pacientes, e aqueles com AVCi menor mas grande vaso obstruído podem se beneficiar mais de trombólise. Portanto, fica a ponderação de analisar estudo de vasos para cravar a decisão de não fazer rtPA em pacientes com AVCi menor. Um último ponto limitante foi a exclusão de AVCi cardioembólico, que é cerca de 20-30% dos casos e limita a generalização dos resultados.


Referências:

- Fischer U, Koga M, Strbian D, et al. Early versus Later Anticoagulation for Stroke with Atrial Fibrillation. N Engl J Med 2023; 388(26):2411-21.

- Chen HS, Cui Y, Zhou ZH, et al. Dual Antiplatelet Therapy vs Alteplase for Patients With Minor Nondisabling Acute Ischemic Stroke: The ARAMIS Randomized Clinical Trial. JAMA 2023; 329(24):2135-44.

23 junho 2023

UTI amiga do ambiente

 A UTI é ecologicamente ajustada? Parece pergunta inusitada, mas será feita frequentemente em breve.

Conceitos de "evite, reduza, reuse, recicle, pesquise e repense" virão para a UTI. Há alto consumo de "pegadas" de CO2, com uso de energia elétrica, medicamentos, dispositivos. Além de ambiente com ar condicionado, que usa muito mais energia se comparado a ventiladores, diálise e bomba infusora. Existe grande uso e descarte de materiais plásticos (inevitável materiais de uso único por paciente). Mas a produção de CO2 é diferente entre UTI australiana (~90kg) vs americana típica (~180kg). Se existe esta diferença, é porque é possível melhorar ! Outro dado: UTI produz 3 vezes mais kg CO2 que leitos de enfermaria. Rouparia e limpeza usam água de maneira heterogênea também. Exames laboratoriais e imagem são repetidos excessivamente, gastando materiais e fornecendo pouca informação, em muitas ocasiões.



Que tal estas ideias?
Evite: admissões desnecessárias, reinternações, complicações, desperdício de alimentos
Reduza: exames complementares, otimize uso e frequência de medicações, uso excessivo de EPI, uso de papel (PEP eletrônico e assinatura digital)
Reuse: EPI (?), aparelhos individuais que acompanham paciente de UTI para enfermaria, laringoscópio, etc
Recicle: separe lixo, eduque equipe

Outras: reuniões virtuais quando possível, usar pacote de medidas com metas, criar indicadores de prod. CO2



Este artigo ainda fornece um kit de ferramentas para implementação da estratégia de UTI amiga do ambiente. Vale a pena ler.

Ref.: Baid H, Damm E, Trent L, McGain F. Towards net zero: critical care. Brit Med J 2023;381:e069044.

19 junho 2023

Probióticos: a emenda sai pior que o soneto para pacientes mais graves

A disbiose é o desequilíbrio entre bactérias comensais e oportunistas em um ecossistema, como por exemplo a microbiota intestinal. Ela pode causar sintomas que vão desde dor em cólica e náusea, até hipertensão intra-abdominal e sepse. Este processo decorre muitas vezes da alteração de microbiota pelo uso de antibióticos e antiácidos (como inibidores de bomba de prótons). Nos últimos 20 anos, a tentativa é de restaurar parte da microbiota habitual com probióticos, contendo bactérias ou fungos. Existem inúmeros compostos no comércio, que são usados à vontade, muitas vezes sem receitas médicas.

Mas o uso de probióticos é isento de riscos ? A administração pode ser prolongada, em conjunto com o uso de medicamentos que levaram ao processo de disbiose ?

Por isso separei 3 artigos recentes que botam estes conceitos em dúvida.

Primeiramente Merenstein e colaboradores fizeram uma revisão muito legal que falam desde a fabricação industrial de probióticos até seu uso clínico. A fabricação deve seguir conceitos de cultura bacteriana e contagem de colônias muito estritas, além de cultivar em meios de cultura para assegurar que as bactérias têm MIC (mínima concentração inibitória) para antimicrobianos e não têm tendência a se tornarem resistentes também. A ideia de repor algumas espécies de bactérias e recompor a microbiota de um indivíduo também é muito frágil: cada pessoa tem uma microbiota diferente da outra, e dar uma receita padrão para uso industrial parece se tornar uma ideia ao mesmo tempo frugal e enganosa. São raras as vezes que se pede um exame de fezes detalhado (análise de RNA ribosossomal procariota ou metagenômica) do paciente para se saber a composição da microbiota naquele momento e verificar as espécies existentes que pode se repor ou inibir. Veja abaixo a complexidade da composição majoritária de microbiota intestinal:


Saikrishna estudou o efeito de probióticos em pacientes na UTI, fazendo exame de fezes com marcação de RNA ribossomal para analisar as mudanças após administração de fórmula de probiótico com espécies de Streptococcus, Lactobacillus e Bifidobacterium ou placebo em grupo controle. Para surpresa de todos, não se encontrou diferença na análise de fezes após 7 dias na diversidade da microbiota dos 2 grupos, nem diferença em taxas de infecções nosocomiais ou tempo de permanência. Um único resultado positivo foi a redução de abundância de algumas bactérias patogênicas no grupo com probiótico.

E Mayer e colegas estudaram mais de 23 mil pacientes de UTI usando cateteres venosos profundos, de maneira retrospectiva. O objetivo era saber se probióticos se associaram com a taxa de infecção de corrente sanguínea. O resultado foi que além de não haver redução desta infecção na população com probiótico, ainda havia um risco de desenvolver bacteremia ou fungemia pelo uso de probiótico, principalmente se a forma de administração era de drágea/pó. O NNH ("number needed to harm") foi de 270, que deve ser considerado. O possível mecanismo (já demonstrado em relatos e séries de casos nos últimos 20 anos) é que se abre a drágea, se coleta o pó com bactérias ou fungos e se dilui em um recipiente para depois se administrar pelo cateter enteral. Neste intervalo se mexe também com o cateter venoso, e o estrago está feito...

Enfim, o uso de probióticos em pacientes graves (que em várias ocasiões também são ou se tornam imunossuprimidos) pode causar efeitos colaterais inesperados e raramente beneficiam os pacientes. "A emenda sai pior que o soneto", como disse o poeta Manuel Maria Barbosa de Bocage.

Merenstein et al, "Emerging issues in probiotic safety: 2023 perspectives". Gut Microbes 2023; 15(1): ttps://doi.org/10.1080/19490976.2023.2185034.

Saikrishna K et al, "Study on Effects of Probiotics on Gut Microbiome and Clinical Course in Patients with Critical Care Illnesses". Microbiol Ecol 2023; https://doi.org/10.1007/s00248-023-022248

Mayer et al, Crit Care Med 2023: 10.1097/CCM.0000000000005953, June 01, 2023.

Carvalho LD, disponível em https://virusdaarte.net/a-emenda-saiu-pior-do-que-o-soneto/.


Transfusão de hemácias na UTI: após 20 anos

  Título: Red Blood Cell Transfusion in the Intensive Care Unit. Autores: Raasveld SJ, Bruin S, Reuland MC, et al for the InPUT Study Group....